quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A alma das coisas

Nos tempos livres  passava horas  a olhar a madeira. Em silêncio desenhava o projecto na cabeça, inventava os malhetes que encaixariam na perfeição, seria bom que a sua própria vida fosse bancada de marceneiro, onde tudo estava arrumadinho e era meticulosamente limpa no fim de cada trabalho! Na vida era bem diferente cada gesto não apagava o outro, cada acto não esvaziava o que lhe antecedera.  Só na intimidade do lar reconheciam que Jaime era mais que um bom profissional. Era um artista que punha a  alma nas suas criações. Ele inventava os instrumentos com que trabalhava a madeira; de uma máquina de costura nascia uma serra com que fazia recortes florais para os embutidos, de um pedaço de ferro nascia a peça que transformaria a tábua em peça torneada,  a máquina para cortar fiambre seria transformada em máquina de desbastar as arestas mais renitentes.
Tentava  acalmar a frustração em que vivia, na vida profissional, enchendo a casa com as suas criações que durariam muitas vidas. Cada trabalho tinha um segredo, nenhuma cómoda ou secretária se abria sem que o segredo fosse descoberto. Nenhuma caixa se revelava sem que o mistério da sua abertura fosse explicado por Jaime. Era a sua marca.


Na empresa mostrava os seus dotes quando alguma remessa era recusada devido a defeitos de fabrico. Noutras ocasiões eram milhares de francos que se desperdiçavam, com a chegada de Jaime à empresa a solução tinha sido encontrada. Durante semanas Jaime era solicitado para "engomar" as portas como ele tinha sugerido ao ver as  amolgadelas .Com paciência de artista ele utilizava o ferro de engomar para fazer com que a madeira voltasse à forma original sob o efeito do calor. Com um simples ferro de engomar a reputação de Jaime percorreu a empresa como notícia de jornal e acertou o seu destino até à idade da reforma antecipada pela doença. Foi respeitado por chefes e colegas que o elegeram para ser seu representante, Jaime nunca deu no entanto grande importância a essa tarefa. Nunca fora homem de discussões em cima da mesa, de debates sem fim. Era um homem de acção, entregava-se de corpo e alma aos seus projectos e por vezes sem medir as consequências.
Ele fugira da miséria do interior do seu país e viajara na ténue esperança de saltar de vez para além do muro da miséria. Arrastou consigo o carácter integro, quase rude, do aldeão, mas perante as suas obras ele sorria com enlevo .