domingo, 19 de junho de 2016

A vida feita de imagens

A tua vida de menina, contada por ti joaninha mais parecia-nos um filme cómico, retalhos de vida preenchidos com humor mesmo nos momentos mais dramáticos. quantas vezes nos ríamos os quatro, quando nos relatavas as tuas aventuras na praia da Trafaria, para onde a tua avó paterna te levava e onde te deixava sozinha devido à doença que se apoderava do seu cérebro insidiosa, lenta e cruel que viria mais tarde a cortá-la da realidade e da família.
 Falavas dela com carinho e muita saudade daqueles tempos, sempre preocupada por ela estar longe naquela cama de um Lar de idosos limpo, com pessoas competentes mas isolada do mundo, o espírito e a memória dormentes. Morreu muito velhinha... encontraste-a Joaninha nessa tua nova viagem?
Contavas que ela partia e tu ficavas na praia entregue às tuas brincadeiras; só te vinham procurar quando alguém se apercebia que a avó tinha regressado sem ti! Contavas vezes sem conta essa história e rias mas na verdade a tua história era triste e nós víamos o teu sorriso forçado quando afirmavas que mais ninguém tivera tempo para se ocupar de ti. Afinal Amar é dedicar tempo ao outro, tempo  que não temos mas que eu pensava poder vir a compensar-te e tu não me deste esse tempo meu Amor.
Acredita Joaninha que gostávamos de ouvir as tuas histórias de menina solitária mas sempre alegre.Pegavas nos pedaços da tua infância e fazias deles uma alegre gargalhada.
Ríamos ao imaginar-te pequenina levando para a praia o pequeno cofre com o ouro da avó que durante uma tarde preencheu as tuas brincadeiras na areia. Brincaste com o pequeno tesouro como quem brinca com búzios e conchinhas, tinhas nas tuas mãozinhas uma riqueza sem o saber, encontrarias no teu percurso de vida tanta forma de partilhar afectos, alegrias descobertas nas viagens que partilhaste connosco mas tu sempre preocupada com os outros, foste perdendo energias e não conseguiste subir o caminho íngreme da felicidade.
Tornaste-te uma mulherzinha magnífica, despegada de bens materiais. A tua única paixão seriam as fitinhas, laços e acessórios baratos com que te enfeitavas, sempre com gosto em harmonia com o momento e a fatiota que usavas.
A tua história parece-me agora uma curta história de Amor com a Vida. Alegro-me ao pensar que ao encontra-nos abriste portas para desvendar todo o teu potencial como ser humano que até então dormia na menina despretensiosa que tu eras.

domingo, 15 de maio de 2016

O baú das Memórias


Somos um baú de memórias intemporais, etéreas, memórias que só ganham vida e corpo, quando alguém sem pré aviso nos bate à porta e entra de novo na nossa vida. Então com cautela devemos mexer no suave tule que protege momentos inesquecíveis e fugazes.
Durante alguns anos ficaste no meu baú joaninha. Esqueci a tua história, o teu sorriso, as tuas  enormes lunetas. Passavas por mim e eu já não te via.
Continuavas a ser a bonequinha de óculos coloridas e gigantescos que quase disfarçavam a tua suave beleza... e eu passava sem te ver, no meio da desordem organizada do grupo de crianças que corriam e gritavam como temerários piratas que tomavam de assalto o confortável silêncio dos adultos.
Os efervescentes e tumultuosos dias iam passando rápidos, naquele espaço onde o saber viver com os outros era relegado para segundo plano. Pouco a pouco transformei-me num ser frio e indiferente que disfarçava os medos e as inseguranças sob uma capa de arrogante distância.
O medo de falhar cegava o meu coração. Entrava na tua escola, Joaninha, que também era o meu local de trabalho, como se entrasse  na cratera de um vulcão. Nunca podia prever se no segundo seguinte alguém explodiria de raiva e de impaciência.
Naquele espaço não ensinavam o Amor, o Respeito e o civismo. Tu Joaninha, como tantos outros, eram despejados na Escolinha onde durante quatro anos continuámos a cruzar-nos. Quatro anos reduzidos à explosão de segundos, a um trocar de olhares que guardarei para sempre no meu baú pois foi um tempo fora do tempo.
 Preencheu de sentido a nossa pequena história que viríamos a partilhar quando um dia depositaste a chave do teu coração, nas mãos do teu Amor que era também o Meu.
Ambas víamos nele o herói que sobressaía da banalidade. Tu como Mulher eu como mãe tínhamos orgulho em partilhar o espaço com um ser tão sereno, tão confiante, tão apaziguador. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Partida


Que a tua partida nos ensine todos os dias a darmos valor ao momento, ao olhar cúmplice ou terno de quem cruza ou partilha a nossa vida. Que a tua eterna ausência faça de nós pessoas melhores.Não podemos abrir mão de um amor tão grande, de alguém tão especial, sem aceitar que qualquer acontecimento  não pode ser um acaso em vão, um absurdo engano da trama que a vida vai tecendo!
Foste uma brisa celeste que passou, e por ti queremos aprender a ver com olhos de amor, com olhos de ver todos os momentos que se cristalizam no tempo e que de vez em quando se reavivam como fogo fátuo que do nada brilha na escuridão da dor e da saudade que dói...que dói.
Não partiste Joaninha, só mudaste de rumo; a tua essência continua etérea nos pedaços de papel que deixaste para trás com recados da tua vida que não te aprisionou, mensagens que escrevias e que povoavam o teu quotidiano.Preocupações tuas  que ficaram retidas para sempre no tempo, e que não tiveste tempo de resolver.
.Queremos aprender nos momentos especiais a senha que conduz à felicidade, à união entre espíritos que partilham a  beleza de uma paisagem, de uma conversa ou até de uma boa refeição.
Cada palavra, cada segundo poderão ser os últimos e por isso terão sempre que ser vividos com a  intensidade que só o amor exige e permite.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Um encontro

No meio da confusão de um átrio de escola, descobri o teu olhar que espreitava por detrás de uns óculos gigantescos! Ainda hoje não consigo compreender o motivo daquele  prolongado cruzar de olhares... o meu mundo parou por uns momentos. Senti um misto de bem-estar e inquietação. Como que a responder a um chamamento mudo, a tua cabecita girou sobre o teu ombro direito e o sorriso fixou-se em mim  por segundos. o ruído de fundo desapareceu, o tempo parou, mas por fim a tua atenção concentrou-se novamente nas actividades que estavas a fazer com os colegas e esqueceste-me. O calor suave que senti no meu peito dissipou-se, enquanto alguém me falava da tua vida de criança, em pinceladas curtas e rápidas. Parecias uma menina feliz. Mas quem serias tu pequenina!? Fizeste algo acontecer enquanto eu atravessava o átrio da escola onde trabalhava. Uma maravilhosa experiência que derreteu o meu coração, habitualmente indiferente a pessoas estranhas. o teu suave e talvez tímido sorriso fez esquecer os óculos de lentes grossas e enormes que quase tapavam o teu olhar, um pouco perdido, e a tua face de anjo.
Quem eras tu pequenina para mergulhares sem aviso na minha memória? Serão momentos assim, os sinais intemporais da vida que deveríamos agarrar com a força de quem vai naufragar? Instantâneos  que se vão escrevendo  na tela e na teia que antecede o futuro.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

As palavras podem unir ou não... as palavras podem ser pontes que nos levam onde o corpo não pode ir , as palavras rompem silêncios que condenam ao isolamento e à tristeza mas elas nem sempre podem ser a varinha mágica para todas as desgraças da terra.
 Há momentos em que as palavras ficam mudas, são aqueles momentos que acontecem quando na vida Alguém plantou um espinho no meio do caminho que alegremente percorríamos, partilhando palavras simples, porque simples é o amor. Este espinho pode ser uma partida, uma perda, uma morte inesperada.
O meu espinho continua a crescer e tirou-me o sentido das palavras. Como gostaria que o tempo o transformasse num cardo florido que possa servir ao menos para dar força ao desalento. Quero concentra-me no balançar sereno das flores deste cardo, que em julho esmoreceu e em julho coagulou a minha mente que, num processo lento e senescente, se agarra à memória do que foi dito.
Se a força das palavras igualasse a força do amor construiríamos todas as pontes que uniriam o passado e o futuro, e a tua perda não seria tão dolorosa no presente. Não encontro no entanto, as palavras que dêem sentido ao inesperado acontecimento que me arrancou da vida, finalmente serena e pacifica.
Ao perder-te perdi-me, e perdi de novo a confiança que crescia, à medida que te via fazer projectos. Sinto-me culpada de não te ter dado a mão, sinto-me a pior das amigas porque não vi os sinais que o corpo de certeza nos dá e te deu. Sinto-me culpada porque vi partir Licas e não derramei  uma lágrima e vejo a morte lenta apoderar-se de Jaime que arrasta os pés pela casa, sem uma pinga de piedade. É a vida penso eu...tudo morre e se for no tempo certo, nada podemos lamentar.
Mas o que é o tempo certo para partir? Não tenho respostas. O coração fala por mim, que fiquei muda e sem alento para falar sobre o  o sentido que todos procuramos nesta vida. Mas que sentido ? Talvez o sentido da vida seja o riso irónico do destino que nos leva ao colo. Como criança a quem tiraram o brinquedo querido, choro e estendo as mãos vazias. Digo e repito a mágoa e sinto que ando num carrossel que me leva a nenhum lado.
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Só resta a partida

Tento manter acesa a luz indefinida que dentro do peito nos conserva vivos, aquele sentimento morno que nos dias de inverno nos mantém confortáveis na nossa sala de memórias, continuo a olhar a porta como um cão que perdeu o dono e não sabe transmitir verbalmente a sua perda. Sou um cão tinhoso que foge de medo, se uma mão tenta tocar o meu pelo velho e sem brilho.
 Indiferente à dor de Jaime que caminha muito devagar para  o prolongamento do fim( porque o seu fim já teve início há eternidades) cultivo o monólogo porque a minha mensagem esvoaça sempre em torno de uma dor, que ao invés de se apaziguar com o tempo, parece estar incrustada nas paredes, nos rostos desconhecidos, nas palavras que temos medo de dizer .Os amanheceres só trazem mais e mais dor....porque mais do que perder-te eu perdi-me a meio do caminho que tentava subir, seguindo os teus risos, meu Anjo de olhos celestes.

sábado, 30 de junho de 2012

Entre o nascer e o morrer o que pode existir senão o prazer? A ausência de sentido da vida só pode ser ultrapassada com o prazer de partilhar com os outros este vazio que vai aumentando à medida que o corpo se degrada. Ariana bem tentava convencer Jaime que cada minuto decorrido era uma dádiva da vida mas ele caía num desespero egoísta, sempre preocupado com os sinais que o seu corpo lhe lançava. Depois de ultrapassado o meio século não podia perder tempo com futilidades, com conversas da treta sobre valores e méritos conquistados a pulso... Não! Essa conversa de percorrer o caminho da vida tentando alcançar terraços , transpor degraus ou declives, rodopiando de obstáculo em obstáculo sempre consciente que em cada patamar se pode  parar e vislumbrar o que se fez de bom ou de mal ...não era conversa para Jaime! Ele nunca cometera erros! Cada gesto, cada escolha, cada palavra doce ou amarga era consequência de uma necessidade do momento, por isso não tinha que fazer nenhuma introspecção!nunca Jaime reconheceria que na escadaria da vida é reconfortante povoá-la de gente boa e leal, para tal seria sempre necessário fazer cedências e destas cedências retirar o prazer da partilha. 
A grande revolta de Jaime advinha do facto de se sentir um número fora da contagem. Tinha deixado para trás a sua criatividade, o corpo corroído de dores não lhe permitia ficar de pé junta à bancada de trabalho de onde tinham saído tantos objectos que davam sentido ao absurdo oco do seu  quotidiano. As horas passavam agora paralisadas numa inactividade absoluta. A abstinência criativa era talvez pior que a  decrepitude física.

Os limites do pequeno jardim eram os limites do seu pequeno mundo de onde se recusava a sair nem que fosse para um pequeno passeio que desentorpeceria as pernas doridas. Também... pouco havia a descobrir numa localidade a definhar na ignorância das gentes! Uma terra a envelhecer saturada pela letargia de quem detém o poder.Um rio a morrer devido à pesca ilegal que, no presente, já mal alimenta as famílias e os vícios. Tinha sido um rio parcimonioso com a população ribeirinha. Jaime lembrava-se daquele rio que alimentara famílias inteiras, lembrava-se da praia onde brincavam novos e velhos. A vasta praia que se estendia até à Cova do Vapor (transformada agora em depósito de lixo), onde se faziam os festejos tradicionais com as corridas de botes, a caça ao pato e os jogos do pau ensebado. À beira rio cruzavam-se olhares que viriam a dar em casamentos, o que nos mostra o carácter fortuito da existência que pode ser o fruto de um jogo caótico de encontros e desencontros. Jaime não gostava do ar húmido do rio que lhe trazia à memória grandes ataques de asma.