terça-feira, 28 de setembro de 2010

Viagens ao acaso

Jaime tinha orgulho quando pensava  que apesar de não saber expressar-se na língua gaulesa, tinha conseguido tirar a carta com grande empenho. Depois do trabalho sentava-se em frente da sua companheira e, com a sua ajuda, persistia em decorar os sinais e as regras que ele nem sempre entendia. A carta de condução era indispensável para que ele pudesse todos os anos levar a sua família à terra que o abandonara. A carta era o seu passaporte para as viagens que ele viria a fazer. Ao longo do ano seriam viagens circulares, como trilhos que o acaso os impelia a fazer.


Ao fim de semana a família entrava no carro e seguia o traçado da estrada que nunca os levaria muito longe. Nem sequer era a volta saloia pois quando Jaime pegava no volante não sabia onde iria parar, nunca tinha um destino concreto e isso era uma aventura vivida em família com mais ou menos apreensão. Todos tinham que partilhar a alegria de Jaime que mostrava os seus dotes de condutor mas não de explorador. Por vezes atravessavam caminhos rurais e por pouco não mergulhavam nos cursos de água que atravessavam os campos. Eram sustos controlados como afirmava Jaime: -" Faz parte da aventura!". O sentido de orientação de Jaime foi sempre o seu principal problema. Na grande odisseia anual chegou a conduzir a família de volta para casa, pensando ir a caminho de Portugal. Claro que nunca chegava a perder-se, segundo ele também os marinheiros seguiam as estrelas, acariciando as ondas até chegar a um destino, um pouco mais ao lado ou um nadinha mais à frente das previsões. Não tinha importância que  entrasse por Vilar Formoso ou por Badajoz na terra -mãe. O importante era chegar inteiro, o corpo amachucado e a alma a rejubilar depois da peregrinação de dois ou três dias.


terça-feira, 14 de setembro de 2010

Do colégio para o mar

Catorze anos! A idade das dúvidas existenciais, idade da identificação no seio do grupo.Catorze anos! A idade dos amores, das paixões não correspondidas.Para Jaime os seus catorze anos foram a idade em que ele pela primeira vez afagou suavemente uma tábua . Estava no Colégio São João de Brito, onde fez um pouco de tudo até à idade de "ir às sortes". Decorreram seis anos e foi durante esse período que a verdadeira vocação de Jaime se revelou. Faria com a madeira o que o escultor faz com o mármore, ou o pintor faz com a tela, ou o escritor com a sua obra...despejaria nela toda a sua  alma,a sua vida e o seu engenho.
Foram seis anos de  alienação do corpo: pelo trabalho duro, pela constante pressão que sobre ele exerciam, a fim de direccionar a sua acção de modo sempre eficaz, sem direito a reclamações . Libertou a alma: pelos princípios que o impulsionavam a ver na criação a beleza divina e a reconhecer nos outros uma bondade que ele, até então, só reconhecera na sua mãe . Ganhava muito pouco (e sem direito a pedir aumento pois corria o risco de ser conotado como comunista!), mas tinha no Colégio um abrigo humilde : Uma cama, um armário uma mesa e uma cadeira preenchiam o seu espaço silencioso e monótono.Oficialmente o Colégio albergou os primeiros Jesuítas em 1947, aí foram recebidos uma dezena de alunos aproximadamente, era uma pequena família onde Jaime sentia que era também um elo na engrenagem.
Tinha o seu lugar na pequena comunidade elitista que podia ocupar os espaços deixados livres pela família. Só muito mais tarde o Colégio  albergaria mais de cinco centenas de almas mas por essa altura já Jaime partira por outros atalhos .
Aos vinte anos, o homem da beira baixa teve que deixar o Colégio e escolheu o mar por companheiro. Na Marinha revelou-se a fragilidade do corpo não só pela má nutrição da infância mas também porque a herança genética tem a sua palavra a dizer e nesse campo infelizmente a doce mãe Ermelinda deixou-lhe como legado não a sua doçura mas as mazelas físicas.
Jaime, na cama, esticou o corpo dorido , tentou passar o braço por cima do ombro desnudado de Licas e desastrado nos contactos físicos pousou a mão com violência sobre o cabelo de ouro.Acordou-a e por ali ficaram a fazer falar as memórias e os desejos, no espaço da noite e dos lençóis amachucados. Licas estava maravilhosa com o ventre rosa bem redondo, um novo membro da família vinha a caminho para se juntar aos três mais velhos.
-Vá não sejas marota sabes bem que agora não há perigo - disse Jaime - Havia que aproveitar!
A gravidez era uma certeza que poupava muitas aflições, incertezas e angustias numa época em que os métodos contraceptivos ainda não eram uma realidade para todos os casais, sobretudo os emigrantes, que achavam que aumentar a família era um sinal de cidadania, num país onde os casais já optavam por terem um ou dois filhos.

Não podemos ficar acorrentados para sempre

Um novo Verão estava à porta, Jaime tinha insónias e durante as longas noites acordado, antecipava o seu novo périplo em direcção a Portugal.A seu lado Licas dormia doce e, como sempre,  emanava do seu corpo, quente e embalado pela quietude da sua noite, a paz que o seu homem jamais sentira antes.Jaime soltou um pequeno queixume e logo Licas entreabriu os olhos em sobressalto e perguntou:
-Estás bem Jaime?
- Dorme estou a pensar na minha vida...
Seria ele capaz de parar na sua terra e mostrar aos seus filhos os cantos e recantos sempre frescos e verdes que ainda persistiam em falar-lhe através dos tempos?
Quando vinha de férias, tinha por hábito deslizar como num sonho, sobre a estrada sinuosa da serra que ligava o Fundão a Alpedrinha, passava a Capela do Anjo da Guarda, olhava à sua esquerda e via a sua vila lá em baixo...pesarosa pela  indiferença do seu filho pródigo. Nunca mais tornara a voltar, desde os seus trinta anos, a não ser para o funeral do seu pai Francisco que com mais de noventa anos ainda cortava as árvores do pomar. Foi ao cortar um ramo que ele caíra e partira uma perna que ele se recusou a tratar. Morreu longe de todos, na maior das aflições com a perna negra e morta.
"Talvez este ano eu pare e mostre de novo a minha terra aos pequenos , talvez eu tenha coragem para partilhar com eles, que estão mais crescidotes, o vazio que tenho quando recordo a infância". Pensou Jaime voltando-se com dificuldade na cama. A  bronquite-asmática que herdara de Ermelinda não o deixava respirar. Pensou na  mãe mas logo abandonou a sua imagem que já não era muito nítida e pensou no talho, nas carnes frias e inertes que ele fora obrigado a deixar.
Recordou os meses de recuperação do acidente  em que ele ficara pendurado durante alguns segundos, preso pelo músculo braquioradial . Pensou na casota do cão, que morrera esquelético,  onde  se abrigava das noites longas e solitárias. Adrião não podia continuar a dar guarida ao irmão, a não ser que ele fizesse um pequeno esforço financeiro...
A única divisão onde morava o irmão e a família não podia albergar Jaime que  preferia de longe aquele abrigo improvisado que um vizinho mais solidário lhe propusera. Jaime preferia a pequena casota ao ar pesado, com cheiro a corpos suados e cansados, a sopa de feijão e a urina nocturna,  que circulava na casa- abarracada.
Aquelas recordações levaram-no a pensar quão difícil tinha sido a sua jornada para chegar a ser Homem. O luar era sempre um bom companheiro e um excelente conselheiro e, apesar de estar debilitado, decidiu procurar um quarto alugado, digno dos seus catorze anos já feitos. Ainda lhe sobrara algum dinheiro que o patrão, pessoa com alguma humanidade e sentido de responsabilidade, lhe dera para poder sobreviver nos próximos meses.Via-se com o braço ao peito lavando a sua roupa e fazendo uma sopitas que ele inventava.
Sorriu ao recordar o grupo de amigos que o seguiam barulhentos calçada acima. Pediam-lhe amiúde que entrasse nas lojas do bairro para perguntar o preço de algum artigo. Jaime não era desprovido de esperteza mas era ainda ingénuo e não percebeu logo que se tratava de estratégias de grupo para sorripar alguma fruta, exposta em tabuleiros inclinados , no exterior das mercearias. Depressa largou os amigos da onça.
Sorriu na penumbra dos lençóis e chegou-se à sua companheira sempre tão disponível e pronta a cumprir os rituais do amor que os unia cada vez mais. Como num filme a preto e branco, passou em câmara lenta, o rapazinho de poupa que a brilhantina mantinha no lugar o dia inteiro. O chapéu de abas fora parar ao lixo quando duas cachopas, por acaso bem formosas o olharam e comentaram:
-  Que jeitoso... é pena ter chapéu!
A partir daquele dia Jaime nunca mais sairia de casa sem um pente na algibeira e amiúde era vê-lo passá-lo discretamente sobre o cabelo ondulado para compor a sua pequena "crista", o seu tufo de cabelo rebelde contemplando o seu reflexo numa montra qualquer.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

No regresso procuramos quem eramos no olhar do outro

Nas férias de Verão Licas  retorna à casa materna mas isso para Adelaide era pouco. Os elos estavam para sempre quebrados, ela preferia manter uma certa distância, para sofrer menos na dura realidade da partida. Durante as semanas da estadia da sua menina, a rotina era quebrada e isso incomodava-a um pouco.Sempre fora dona e senhora da sua casa, do seu espaço e do seu tempo.Sempre fora ela que tomara as grandes e as pequenas decisões.A consulta prévia a Alberto, o seu companheiro de sempre, era uma mera formalidade. Confrontado com a necessidade de empreender algo, Alberto, o marido de Adelaide e padrasto de Licas, tinha por hábito responder com um pequeno riso que era quase um soluço ou então ria com um riso fresco e sonoro como se fosse uma criança.O seu riso afastava qualquer vontade de confronto e resignada Adelaide nem insistia . Em vão esperou durante anos por respostas que confirmassem que as suas decisões tinham sido as mais acertadas. Nessa matéria a vida de Adelaide foi um deserto que ela teve que percorrer com o fardo das responsabilidades às costas.O companheiro seria sempre uma ténue sombra que nos momentos decisivos sorria dizendo:" Tudo o que fizeres eu aceito e apoio."
Adelaide construiu o seu pequeno universo como uma rainha sem coroa. Partilhava o seu espaço com dificuldade se a sua rotina e autoridade fossem postos em causa. Ela ansiava que os dias quentes de Agosto  lhe trouxessem Licas. Com beijos quentes entregava-se aos abraços efusivos da família que orgulhoso Jaime dizia ter trazido sã e salva após uma viagem de dias, vivida como uma peregrinação. Uma longa provação que podia durar dois ou três dias .O céu de Portugal podia não ser tão estrelado ou tão azul como o do país vizinho mas uma vez passada a fronteira de Vilar Formoso uma espécie de embriaguez apoderava-se de Jaime e da família. Era a saudade que se arrumava num canto da memória e era substituída pela alegria esfuziante de pisar o chão onde pela primeira vez abrimos os olhos e começamos a construir a nossa história individual.

Dois mundos um único fim...

Com os seus doze anos vividos aqui e agora, com a dor à flor da pele a viagem de Jaime foi uma fuga para longe do mal infligido estupidamente. Santa Apolónia pareceu-lhe vasta e assustadora. Procurou o seu irmão Adrião que entretanto imigrara para Lisboa. O olhar do seu irmão foi o que chamou a atenção do jovem: Olhos semicerrados, cansados da vida da cidade grande e doentia. O olhar azul e sonhador do montanhês tinha desaparecido.As oito horas da viagem tinham-lhe colado o estômago às costas. A despesa da viagem fora assegurada pelo Regedor da aldeia que com compaixão ajudou Jaime a fugir. Claro que o dinheiro emprestado, a seu tempo, seria cobrado a Francisco que conseguiu livrar-se a uma ordem de prisão, por mero respeito pela família. usara de grande violência contra um menor, o que podia sem dúvida ser crime, mas fazia parte da cultura da época.
A beleza da serra foi substituída pela degradação dos bairros periféricos de Lisboa. A viagem até ao bairro do Cruzeiro foi mais um suplício para Jaime que desde a partida de Alpedrinha nada tinha comido . Passou pela Baixa lisboeta e pela primeira vez viu um eléctrico amarelo que deslizava ruidosamente pelos meandros das colinas brancas, sob o sol tímido da madrugada. Enjoado, baloiçava ao sabor dos movimentos do transporte eléctrico. Deixou para trás o Calvário e pensou nas ruelas de Alpedrinha, reviu o "seu"  Calvário, perto da Igreja Matriz e ficou em pânico.A última etapa foi feita a pé.
A passos largos Adrião aproximou-se do Cruzeiro onde barracas encavalitadas cresciam, no Alto da Ajuda, ali mesmo ao lado do opulente Palácio neoclássico do século XIX. Ironia social, o encontro destes dois mundos tão distintos e no fundo um só.

Paredes de madeira e lata bem perto da residência oficial que recebera a família real, até à implantação da república em 1910,  decorada com aparatosas  tapeçarias de Bruxelas e pinturas alegóricas. Nas barracas nasciam e morriam pobres, mantidos na ignorância, desprezados pela sociedade obscurantista e elitista. No Palácio num passado bem recente, faustosas festas foram organizadas para os filhos D. Carlos e D. Afonso pela rainha D. Maria Pia ,sempre à custa do suor, do sangue e da própria vida de todas as mãos que laboram, contudo no final  só o pó ou a memória restam... tanto  dos ricos como dos pobres.

Chegaram ao número cento e trinta e um da Travessa do cruzeiro. Entraram num pátio antigo, um pátio do século XVIII onde as habitações degradadas abrigavam famílias de operários que desde os anos trinta, chegavam em busca de melhores condições de vida.
As paredes feitas de tijolo de burro, mostravam pouca manutenção por parte dos proprietários que viviam das rendas cobradas aos inquilinos que íam esvaziando o interior do país.
A vida no Pátio era como um trecho de uma história de encantar, onde os ódios, as paixões, os ciúmes,as alegrias e as tristezas eram vividos num espaço restrito e mágico. As querelas entre os miúdos depressa se transformavam em brigas de adultos.
Jaime partilhou este espaço fechado como uma ilha , durante pouco tempo. O irmão Adrião começou a exigir mais dinheiro para o orçamento familiar. O jovem preferiu procurar um quartito na Boa Hora para se sentir dono da sua vida. Até o conseguir qualquer buraco que o abrigasse da noite seria bem-vindo. 







quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A fuga

Jaime viajou como "turista" desesperado. Nos anos setenta, já próximo da Revolução dos Cravos, ainda era a forma possível para chegar a França, sem ter que passar pelas provações daqueles "que davam o salto" através de montes e vales,riachos e aldeias perdidas .
Com o passaporte de turista comprou um bilhete de "Ida" no Sul Expresso. Ao partir, rolou uma lágrima na garganta, um soluço no coração mas fez um "manguito" ao destino  que lhe negava um projecto de vida em terras de Portugal. Contava com a solidariedade de familiares e assim aconteceu. Partir também pode implicar despojar-se de pruridos, alimentar a humildade e receber de alma vazia e cabeça limpa de vãos orgulhos, tudo o que nos queiram oferecer.
Não tinha Licas a seu lado, sentia-se só e desprotegido. Organizou o mais depressa que pôde a sua nova vida de forma a providenciar a vinda da sua companheira.Em Paris esperá-la-ia com a saudade repleta de queixumes que só ela ouvia e entendia com paciência. Os filhos ficariam para trás, em casa da matriarca, Adelaide, protectora da família.
Durante oito meses Adelaide viveu as angústias da penúria. O agregado familiar aumentara de um dia para o outro com os três filhos da Licas sua filha. Eram três crianças que nunca foram ouvidas nem tomaram parte na decisão familiar. Aliás nem a própria Licas fizera parte do plano. Jaime era perito em  quebrar os laços com a vida. Ariana,Isaac e Alfena viram-se como órfãos temporários, entregues aos cuidados da avó que jamais se lamentou ao ver a casa que se sujava mais, da roupa que enchia o tanque. As suas mão encarquilhadas e doridas eram a única testemunha do quanto ela trabalhara duramente.
Tanque cheios de água gelada que Adelaide chegou a ir buscar à fonte que jorrava na mata da Enxurrada , antes da chegada da água canalizada.

Aos quilos de roupa que Adelaide lavava para os soldados, juntavam-se agora as roupitas de mais três pequenos seres deixados para trás, ao sabor dos dias frios da margem sul.
Ariana gostava de acompanhar a avó que, de trouxa à cabeça, se dirigia decidida mas humilde ao soldado de plantão. Um a um os soldados eram chamados. vinham a correr da camarata ou da Messe e recebiam a roupa branca e cheirosa. A sujidade eras lavada sabe Deus com que esforço pelas mãos que se retorciam, pelos dedos que se iam deformando para ganhar mais alguns tostões.
O pedido de Licas apanhou Adelaide de surpresa. Não protestou...deixou-a ir atrás do sonho do seu homem. Depois da partida ouviam-na lamuriar: "Perdi a minha menina... quando voltar estarei morta!"

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A impotência em ser feliz pode vir a tornar-se numa lúcida loucura

José Maria regressou da mina triste e acabrunhado. Era o mais esbelto dos irmãos, herdara do pai os olhos de um azul transparente e da mãe a pele branca e a delicada saúde.Ao ver partir o Adrião não hesitou e com o pouco que tinha partiu rumo ao seu sonho de enriquecer ou pelo menos viver independente com o seu pedaço de terra.
Percorreu, a pé, as veredas, os carreiros e os pinhais que levavam à Serra desventrada pela exploração do volfrâmio.Tinham sido belas ,no século XIX, as suas encostas, com frondosos pinheiros, urzes e medronheiros. Agora abria sem reservas o seu ventre fecundo  e doentio a todos os que acreditavam com uma certa ingenuidade que nascer pobre em Portugal não é impeditivo de estar a um passo do sucesso se o corpo não se recusar ao trabalho.Caminhara durante dias, semanas, atravessou campos salpicados de pedras negras que pareciam obra humana. Era o destino que o empurrava para uma viagem que seria a sua provação, a sua cruz grande como o peso da emergente alienação mental.
Rastejou nos sombrios e baixos túneis da mina . Ganhou algum dinheiro mas a febre levou a melhor sobre a sua capacidade de luta. Regressou a Alpedrinha doente, derrubado pela fraqueza do espírito e pelo peso crescente da ausência eterna da mãe.

Ninguém o quis, ou soube, ouvir e a febre transformou-se em silêncio eterno.Até morrer, abandonado pela família, jamais pronunciou uma palavra, nem quando Jaime tentou tranquilizar-se com o passado e foi visitar o irmão, conseguiu ouvir a sua voz.

A descida aos infernos da Panasqueira

O espírito pastoral desta gente das Beiras acentua uma comovente maneira de mergulhar nas recordações. Jaime sempre abraçado à retorcida e velha figueira, mergulha mais fundo e vê agora, na retina da memória, a sua figurinha vestida de escuro,a cor privilegiada do Portugal daqueles tempos. Revia-se frágil, desprotegido, as socas de madeira sem solas, acenando triste como se fosse iniciar uma longa viagem. tinha então sete anos e era chegada a hora de conhecer a Cartilha Maternal.Foi curto o encontro com as letras , na serra ele já começava a fazer falta.O conhecimento académico não tinha sentido para além de escrever o seu nome e conhecer os números que  fariam falta para desenrascar em algum negócio, porém mesmo aqueles que nunca tinham provado a dor da palmatória e nunca se tinham sentado na dureza da carteira nem molhado a pena no tinteiro de porcelana, sabiam por transmissão oral e quase intuição como nunca se deixar enganar por um feirão menos honesto.
Na escola Jaime esperava impaciente pelo recreio, a sineta tilintava então Jaime desembrulhava o seu saco de serapilheira e daí tirava o pão e os figos, único repasto a que tinha direito. Comia à pressa, as brincadeiras esperavam!
Sem distinção de classes Jaime divertia-se com os filhos do Senhor doutor Feliciano Matos. Para alguma coisa devia servir o esforço que Ermelinda fazia para manter os seus filhos remendados e limpos.Roupas velhas que ela transformava, cosia e recosia. Roupa perfumada sem perfuma, barrelas de cinza que depois de uma noite ao luar eram mergulhadas no ribeiro das Beiradas, eram esfregadas com o velho sabão azul e branco e roupas velhas eram transformadas em fatos perfumados, principescos!
Depois da escola regressava o pequeno, o estômago apertado pela fome mal enganada pelos figos lampos.Atravessava de novo o pinhal e distraía-se a perseguir as efémeras borboletas, que ora pousavam nas giestas ora borboleteavam à frente do seu narizito.Era um passar pela vida sem os sobressaltos dos pobres da cidade, obrigados a mendigar na Paróquia do bairro. No campo, mantinha-se a dignidade , bastava madrugar, ter uma prole numerosa para ajudar na lavoura, ser honesto e respeitar os senhores da terra e o Senhor do Alto.
Por aquela altura já a família de Jaime se dispersara. Alguns, mais velhos, tinham partido para procurar trabalho nas minas da Panasqueira. Poucos anos antes da segunda guerra mundial, a procura de volfrâmio já era grande. A Europa e sobretudo a Alemanha preparavam-se para o confronto e a industria de armamento desenvolvia-se. Este minério era utilizado como endurecedor de ligas metálicas.
Os jovens partiam de Alpedrinha, rumo ao Fundão, depois seguiam na direcção de Silvares. As doces e verdejantes encostas da Gardunha tinham ficado para trás. Passado Silvares galgavam as encostas até ao rio Zêzere. Aí, petrificada a paisagem natural era absorvida pela paisagem humanizada: as escombreiras provocavam um certo mal estar nestes homens que acarinhavam a terra.
O José Maria fora o primeiro, logo lhe seguiram o exemplo o Alexandre e o Adrião que tivera a sorte de acabar a quarta classe.
As minas eram o inferno debaixo dos pés. Eram trabalhos e vidas difíceis que transformaram a identidade de várias gerações que passariam a ter como horizonte uma actividade proletarizada e dos sonhos pacatos ao sabor das colheitas, passaram aos sonhos intranquilos, marcados nas notas de conto.
Muitos foram os que graças à sua robusta compleição de homens da lavoura, conseguiram uma alucinada ascensão económica que por vezes frisava o patético. Não apostando na formação, na alfabetização destes novos operários, comprometia-se a vida comunitária que não era segura devido a rixas constantes, a roubos e mesmo prostituição.
 Uma temporada nestes infernos subterrâneos para ganhar o dinheiro que permitisse comprar uma parelha de vacas dava direito àqueles que a sorte não bafejava, a umas  febres que, de tão fortes que eram, faziam perder em remédios tudo o que fora  ganho.Tal aconteceu a José Maria que nunca mais se recompôs  e acabou internado num hospício enredado nas delirantes memórias que o levaram à loucura que mais não seria que uma profunda depressão.
A loucura  na Idade Média

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A verdadeira viagem sempre ficará por fazer

Além a figueira da infância, aqui o pinheiro que também tinha feito a sua viagem pelo tempo e tinha agora a aspereza enrugada que os anos marcaram.Tal como nesse tronco o tempo selara a vida deste homem com cunho duro e pesado.A romagem de Jaime tinha que lhe avivar as memórias e dar novo sentido às imagens fugazes que revolteavam quais fantasmas.A felicidade a que todos ansiamos não pode depender da luta constante entre o individuo e a sociedade que tende a ser injusta e desequilibrada. Encontrar o nosso lugar no mundo ou nosso pequeno jardim não pode depender da desforra  do   presente sobre o passado.
Jaime queria acertar contas com a vida onde o vazio de amor na infância o presenteou com uma fraqueza do corpo que eram o espelho vivo das feridas da alma. Jaime sentiu a rugosa casca roçar as mãos calosas mas bonitas e abriu os olhos à claridade inebriante da tarde.



Nunca sairia daquele lugar de alma leve e solta. Tal como o seu pai Francisco ele temia já a velhice solitária e desprezível. Seria ele também acometido por uma ânsia desmesurada de procriar, julgando assim fugir à solidão da velhice que ele tanto temia ? Naquela viagem dois rebentos acompanharam-no : Ariana e Isaac. Na beleza sólida da serra onde alpendres e escadas de pedra se debruçam sobre as terras cultivadas, Jaime imbuído pela paz  daquele lugar idílico, inspirado pela energia da serra, aumentou a sua prole. Desta viagem às origens nasceria Alfena.