quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A descida aos infernos da Panasqueira

O espírito pastoral desta gente das Beiras acentua uma comovente maneira de mergulhar nas recordações. Jaime sempre abraçado à retorcida e velha figueira, mergulha mais fundo e vê agora, na retina da memória, a sua figurinha vestida de escuro,a cor privilegiada do Portugal daqueles tempos. Revia-se frágil, desprotegido, as socas de madeira sem solas, acenando triste como se fosse iniciar uma longa viagem. tinha então sete anos e era chegada a hora de conhecer a Cartilha Maternal.Foi curto o encontro com as letras , na serra ele já começava a fazer falta.O conhecimento académico não tinha sentido para além de escrever o seu nome e conhecer os números que  fariam falta para desenrascar em algum negócio, porém mesmo aqueles que nunca tinham provado a dor da palmatória e nunca se tinham sentado na dureza da carteira nem molhado a pena no tinteiro de porcelana, sabiam por transmissão oral e quase intuição como nunca se deixar enganar por um feirão menos honesto.
Na escola Jaime esperava impaciente pelo recreio, a sineta tilintava então Jaime desembrulhava o seu saco de serapilheira e daí tirava o pão e os figos, único repasto a que tinha direito. Comia à pressa, as brincadeiras esperavam!
Sem distinção de classes Jaime divertia-se com os filhos do Senhor doutor Feliciano Matos. Para alguma coisa devia servir o esforço que Ermelinda fazia para manter os seus filhos remendados e limpos.Roupas velhas que ela transformava, cosia e recosia. Roupa perfumada sem perfuma, barrelas de cinza que depois de uma noite ao luar eram mergulhadas no ribeiro das Beiradas, eram esfregadas com o velho sabão azul e branco e roupas velhas eram transformadas em fatos perfumados, principescos!
Depois da escola regressava o pequeno, o estômago apertado pela fome mal enganada pelos figos lampos.Atravessava de novo o pinhal e distraía-se a perseguir as efémeras borboletas, que ora pousavam nas giestas ora borboleteavam à frente do seu narizito.Era um passar pela vida sem os sobressaltos dos pobres da cidade, obrigados a mendigar na Paróquia do bairro. No campo, mantinha-se a dignidade , bastava madrugar, ter uma prole numerosa para ajudar na lavoura, ser honesto e respeitar os senhores da terra e o Senhor do Alto.
Por aquela altura já a família de Jaime se dispersara. Alguns, mais velhos, tinham partido para procurar trabalho nas minas da Panasqueira. Poucos anos antes da segunda guerra mundial, a procura de volfrâmio já era grande. A Europa e sobretudo a Alemanha preparavam-se para o confronto e a industria de armamento desenvolvia-se. Este minério era utilizado como endurecedor de ligas metálicas.
Os jovens partiam de Alpedrinha, rumo ao Fundão, depois seguiam na direcção de Silvares. As doces e verdejantes encostas da Gardunha tinham ficado para trás. Passado Silvares galgavam as encostas até ao rio Zêzere. Aí, petrificada a paisagem natural era absorvida pela paisagem humanizada: as escombreiras provocavam um certo mal estar nestes homens que acarinhavam a terra.
O José Maria fora o primeiro, logo lhe seguiram o exemplo o Alexandre e o Adrião que tivera a sorte de acabar a quarta classe.
As minas eram o inferno debaixo dos pés. Eram trabalhos e vidas difíceis que transformaram a identidade de várias gerações que passariam a ter como horizonte uma actividade proletarizada e dos sonhos pacatos ao sabor das colheitas, passaram aos sonhos intranquilos, marcados nas notas de conto.
Muitos foram os que graças à sua robusta compleição de homens da lavoura, conseguiram uma alucinada ascensão económica que por vezes frisava o patético. Não apostando na formação, na alfabetização destes novos operários, comprometia-se a vida comunitária que não era segura devido a rixas constantes, a roubos e mesmo prostituição.
 Uma temporada nestes infernos subterrâneos para ganhar o dinheiro que permitisse comprar uma parelha de vacas dava direito àqueles que a sorte não bafejava, a umas  febres que, de tão fortes que eram, faziam perder em remédios tudo o que fora  ganho.Tal aconteceu a José Maria que nunca mais se recompôs  e acabou internado num hospício enredado nas delirantes memórias que o levaram à loucura que mais não seria que uma profunda depressão.
A loucura  na Idade Média

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