Um novo Verão estava à porta, Jaime tinha insónias e durante as longas noites acordado, antecipava o seu novo périplo em direcção a Portugal.A seu lado Licas dormia doce e, como sempre, emanava do seu corpo, quente e embalado pela quietude da sua noite, a paz que o seu homem jamais sentira antes.Jaime soltou um pequeno queixume e logo Licas entreabriu os olhos em sobressalto e perguntou:
-Estás bem Jaime?
- Dorme estou a pensar na minha vida...
Seria ele capaz de parar na sua terra e mostrar aos seus filhos os cantos e recantos sempre frescos e verdes que ainda persistiam em falar-lhe através dos tempos?
Quando vinha de férias, tinha por hábito deslizar como num sonho, sobre a estrada sinuosa da serra que ligava o Fundão a Alpedrinha, passava a Capela do Anjo da Guarda, olhava à sua esquerda e via a sua vila lá em baixo...pesarosa pela indiferença do seu filho pródigo. Nunca mais tornara a voltar, desde os seus trinta anos, a não ser para o funeral do seu pai Francisco que com mais de noventa anos ainda cortava as árvores do pomar. Foi ao cortar um ramo que ele caíra e partira uma perna que ele se recusou a tratar. Morreu longe de todos, na maior das aflições com a perna negra e morta.
"Talvez este ano eu pare e mostre de novo a minha terra aos pequenos , talvez eu tenha coragem para partilhar com eles, que estão mais crescidotes, o vazio que tenho quando recordo a infância". Pensou Jaime voltando-se com dificuldade na cama. A bronquite-asmática que herdara de Ermelinda não o deixava respirar. Pensou na mãe mas logo abandonou a sua imagem que já não era muito nítida e pensou no talho, nas carnes frias e inertes que ele fora obrigado a deixar.
Recordou os meses de recuperação do acidente em que ele ficara pendurado durante alguns segundos, preso pelo músculo braquioradial . Pensou na casota do cão, que morrera esquelético, onde se abrigava das noites longas e solitárias. Adrião não podia continuar a dar guarida ao irmão, a não ser que ele fizesse um pequeno esforço financeiro...
A única divisão onde morava o irmão e a família não podia albergar Jaime que preferia de longe aquele abrigo improvisado que um vizinho mais solidário lhe propusera. Jaime preferia a pequena casota ao ar pesado, com cheiro a corpos suados e cansados, a sopa de feijão e a urina nocturna, que circulava na casa- abarracada.
Aquelas recordações levaram-no a pensar quão difícil tinha sido a sua jornada para chegar a ser Homem. O luar era sempre um bom companheiro e um excelente conselheiro e, apesar de estar debilitado, decidiu procurar um quarto alugado, digno dos seus catorze anos já feitos. Ainda lhe sobrara algum dinheiro que o patrão, pessoa com alguma humanidade e sentido de responsabilidade, lhe dera para poder sobreviver nos próximos meses.Via-se com o braço ao peito lavando a sua roupa e fazendo uma sopitas que ele inventava.
Sorriu ao recordar o grupo de amigos que o seguiam barulhentos calçada acima. Pediam-lhe amiúde que entrasse nas lojas do bairro para perguntar o preço de algum artigo. Jaime não era desprovido de esperteza mas era ainda ingénuo e não percebeu logo que se tratava de estratégias de grupo para sorripar alguma fruta, exposta em tabuleiros inclinados , no exterior das mercearias. Depressa largou os amigos da onça.
Sorriu na penumbra dos lençóis e chegou-se à sua companheira sempre tão disponível e pronta a cumprir os rituais do amor que os unia cada vez mais. Como num filme a preto e branco, passou em câmara lenta, o rapazinho de poupa que a brilhantina mantinha no lugar o dia inteiro. O chapéu de abas fora parar ao lixo quando duas cachopas, por acaso bem formosas o olharam e comentaram:
- Que jeitoso... é pena ter chapéu!
A partir daquele dia Jaime nunca mais sairia de casa sem um pente na algibeira e amiúde era vê-lo passá-lo discretamente sobre o cabelo ondulado para compor a sua pequena "crista", o seu tufo de cabelo rebelde contemplando o seu reflexo numa montra qualquer.
A vida é uma cadeia de correntes. Algumas mais lassas, outras mais apertadas.
ResponderEliminarSalutas!