sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O trono de porcelana

No trono sentava-se a avó Nila, pernas semi-afastadas e, enquanto ariana tentava apertar as pequenas sandálias, o seu olhar desviava-se para as cortinas em renda que filtravam a luz da manhã , o sol entrava na vasta casa de banho, eram como fios de ouro que atravessavam os vidros martelados e refulgiam nos azulejos alvos, como diamantes pequeninos dançando na parede fria.
A voz doce da "avó" chamava-a à realidade, se não se concentrasse na sua tarefa, demoraria mais tempo e Ariana queria tanto fugir dali para fora!

Ariana olhava para os pés pequeninos e gordos e quase se punha de rastos para que os seus olhos sonolentos se desviassem do tufo negro e odorante que começava então lentamente a deixar escorrer os fluidos matinais.
A menina apressava-se, sentindo náuseas, a encontrar a presilha, os seus deditos retorciam-se até doerem e finalmente conseguia fugir  a correr daquele dilúvio de luxúria que a avozinha , com pequenas risadas organizava todas as manhãs, sem maldade claro...
Como podia ela adivinhar que o odor ácido a urina incomodava a sua "netinha"?
- Marota! Não olhes tanto para cima!- dizia ela enquanto afastava discretamente as pernas luzidias e alvas.

Se fores marota- continuava ela- olha o "mitongo!"
O "mitongo" era a palavra mágica que filtrava na cabeça infantil
a memória de algo perverso. Foram necessária muitas viagens para que Ariana visse nestes momentos íntimos algo encapuçado com o véu da delicada leveza do faz de conta.
Estes momentos fugazes e absurdos não tinham registo no quotidiano de Ariana, por isso ela depressa os esquecia e entregava-se às brincadeiras da sua idade... até à manhã seguinte

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A culpa

O soberbo pinheiro era o refúgio da solidão com travo amargo em que Ariana vivia, longe da família que a entregara aos senhores de África a quem ela tratava por avós. Ariana sentia um misto de tristeza e de desvelo ao olhar aqueles campos ondulados do oeste, que vibravam com cores suaves, cuja matiz variava sob o deslizar das nuvens macias e velozes que, inexoravelmente, se concentravam nos cumes da serra do Montejunto.




Os contornos delicados da serra chamavam Ariana nos dias ventosos do primeiro inverno, passado no "Casal". O vento era o seu companheiro e ela pensava assim não estar sozinha naquela odisseia em que o canto da sereia tinha a voz melosa  e insistente do Velho de Chapéu de abas largas ou da voz doce e aguda da Nila que, todas as manhãs lhe pedia para apertar as sandalitas.
Ariana não resistia a tanta delicadeza. Estava habituada aos modos bruscos do pai e à voz nervosa da mãe Licas. Aquela voz de gata com cio chamava a menina para junto dela. Feliz, Ariana aproximava-se, ela gostava de ajudar... mas depressa a inocente alegria dava lugar a uma revolta carregada de culpa.

Sociedade silenciosa

O mundo dos adultos erguia à volta das crianças longas teias de segredos, as decisões nunca eram tomadas em franco e aberto dialogo. Os pequenos giravam na vida dos adultos mas não eram gente. corriam pelas casas, brincavam em surdina mas não eram pessoas a tempo inteiro. Por vezes eram surpreendidas pela chegada repentina  de um novo membro da família que se transformava numa incómoda e usurpante presença. Tudo era envolto em mistério, meias palavras, meias verdades, metáforas: a sexualidade, a gestação, o milagre do nascimento e até os afectos. A criança não podia ver a luz da verdade que conspurcaria a inocência natural dos petizes. Nesta atmosfera de meias verdades eles depressa se poderiam transformar em vítimas de terríveis sevícias.
Vivia-se atolado em véus que uma vez levantados poderiam pôr em causa a harmonia social. A verdade era perniciosa nesses tempos em que Deus tinha que existir à força por contrato tácito entre a Razão imperfeita e o coração temente. Jaime recordava-se que aqueles tempos não tempos de escolhas racionais. era o tempo dos silêncios amargos que falavam de guerras, de abortos que não o eram, de infidelidades e violência doméstica que a tradição talhava à sua medida.
Tagarelava-se muito e atafulhados em comiserações e coscuvilhice, as pessoas não erguiam os olhos para a história que se ia desenrolando à porta de cada um. antes de deixar o seu país, Jaime bem se recordava dos carros negros da Chrysler que de vez em quando estacionavam em pontos estratégicos da cidade.
Instintivamente impunha-se o silêncio na Rádio Moscovo. Corria-se mais apressado para ir, à mercearia da frente, comprar um decilitro de azeite, meia dúzia de bolachas Maria ou um quarta de açúcar, amiúde para pôr no role pois o ordenado só chegava ao Sábado.
Apesar destas rotinas inocentes alguém desaparecia para sempre, pela calada da noite, desapareciam engolidos pelos carros negros ! Muitos sabiam que em nome da liberdade a polícia da defesa do estado prendia, torturava e por vezes matava. Muitos sabiam e muitos mais se calaram.
Naqueles tempos ainda tão próximos, pensar, reflectir e criar era um luxo, um desperdício de energias, um perigo para o bem comum que se focava na melhor maneira de sobreviver.
Era imperativo sobreviver à falta de instrução, à falta de apoios sociais, à ausências de qualquer politica de habitação. O olhar só se levantava aos céus para pedir ajuda divina e raramente para ver voar os pássaros livres.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Não quero partir

A viagem aconteceu sem que Ariana estivesse preparada ou tivesse escolhido empreendê-la.
A mãe Licas, um certo dia, lavou-lhe com mais cuidado os caracóis longos e ouro; pôs-lhe o vestidinho branco dos baptizados e apresentou-a a um avô tisnado pelo sol de Moçambique e a uma avó Nilas, redonda, de ar bonacheirão e bem cuidada. Ariana impertigada respondeu:
- Só tenho a avó Adelaide, não tenho mais nenhuma!
Então a Senhora com vestido de seda e um belo colar no pescoço gordinho falou e a sua voz terna, quase inaudível cativou Ariana. Baixinho disse ao ouvido da menina:
- Vens connosco durante o tempo que quiseres e serás muito feliz!
Jaime não foi ouvido mas para Licas que sofria ao ver partir a sua menina, seria menos uma boca a alimentar por um período indeterminado. Não via o seu pai desde adolescente mas o seu olhar profundo de um azul transparente ainda a inibiam e ela não sabia porquê!
Ariana chorou baixinho, ela nunca deixara a família para seguir dois seres tão estranhos. Ela não sabia que seria o início de uma louca experiência que a rasgava por dentro e destruiria para sempre a sua ideia de que o mundo era belo e seguro.
A senhora intrigava Ariana com os seus vestidos de seda, discretamente decorada com animais exóticos e plantas estilizadas em relevo, em tons prateados, dourados e lazúli. Das bochechas redondas e coradas sobressaía um narizito ligeiramente achatado, na boca rosa tinha um sorriso eterno que só muito raramente se transformava em esgar quase cruel.

Quanto ao Velho mais parecia uma personagem de banda desenhada: Chapéu branco colonial, fato branco, olhar azul-claro e penetrante, sorriso imutável desenhado nos lábios finos e desdenhosos.
Ele assustava Ariana com a sua estatura gigantesca, as suas mãos duras e grandes, a menina refugiava-se no colo desconhecido da "avó Nila". Ela sorria e enfonava os seios opulentes. Orgulhosa pensava que não estaria longe o dia em que aquele querubim viria a ser seu.
Ariana ainda não o sabia, Jaime e Licas  também não suspeitavam que, ainda menina, teria que lutar pela sua liberdade.

domingo, 21 de novembro de 2010

Regresso do inferno

A pequenita Ariana viveu protegida pelo casulo que Adelaide ia construindo à sua volta como se temesse que algo de terrível pudesse acontecer à sua menina do coração.
Chegara o ano de mil novecentos e sessenta e um, a FRELIMO iniciava o movimento de libertação de Moçambique. Na região do Zambeze Licas e Januário já tinham sido avisados que o melhor mesmo seria partir o quanto antes, ninguém seria poupado sobretudo aqueles que, como eles, vivessem isolados no mato, nas "sanzalas" onde ainda existia uma certa forma de escravatura. Nila não compreendia muito bem como é que as coisas podiam tornar-se mais dramáticas. Perdera já o seu pequenito Joaquim que aos sete anos fora violentamente esmagado por um camião. Perdera a Razão e durante algum tempo o relógio parou na sua cabeça. O seu trato afável, meigo e discreto talvez lhe tivessem salvo a vida. O criado que ela sempre tratara como um filho, um irmão de brincadeiras do seu menino Joaquim, segredou-lhe nervosamente para avisar o "Buana", o patrão Januário, que era melhor partir, deixar a loja a "sanzala" e a criadagem para trás.
Os últimos meses da estadia foram dedicados a empacotar tudo o que puderam; nem se despediram dos amigos que nunca mais reviram. Aproveitando as cheias do Zambeze fugiram como ratos desorientados deixando o navio.

Numa manhã, bem cedo, escondidos pela neblina deixaram a "machamba" que Januário dirigia com mão e chicote impiedosos. A embarcação baloiçava nas turbulentas e lodosas águas que a impeliam raivosamente. Por fim deixaram a região da Beira e subiram para Quelimane. A viagem até terra segura durou dias e só foi possível com a ajuda  dedicada do mulato, do pequeno servo e amigo.

Terminou ali a aventurosa viagem por terras do Ultramar onde tinham vivido como conquistadores sem exército. Nas colónias bastava que a cor da pele fosse branca, muito empenho e trabalho claro, e por vezes poucos escrúpulos para alcançarem os objectivos que Portugal negava ao cidadão das classes mais baixas.
Embarcaram para a metrópole e refizeram a viagem de retorno:  mais velhos, a bolsa um pouco mais pesada mas o coração de Nila chorava mais pobre,  transportando no porão a urna do filho que seria enterrado em frente da Serra do Montejunto.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ariana

Ariana era como todos os bebés: linda, frágil e terrivelmente incómoda. A débil saúde do pai ditou  a partida do casal para a margem norte de onde sopravam os ventos dominantes poluídos e doentios. Ariana ficou para trás, entregue ao desvelo da avó que se transformaria na sua mãe de berço. A pequenita encontrou na casa da avó Adelaide a atenção que os pais não lhe podiam dar; divididos entre as dificuldades impostas pelas carências financeiras e os dramas ocasionais que a saúde do chefe da família impunha.
A pequena mulher suportou com uma misteriosa beleza no olhar azul o que outras mulheres teriam transformado em pesados fardos do destino.
Jaime estremeceu comovido e martelou a peça de madeira a compasso da emoção que sentia ao recordar como foi difícil deixar para trás Ariana, tão pequenina, recém-desmamada, cega procurando sem cessar o seio materno de Licas que chorava quando ao domingo ia visitar Adelaide e via a cabecinha calva da menina esfregar nervosamente o regaço seco da avó.
Como ele amava aquela menina!
No entanto uma espécie de pudor nunca lhe permitiu abraçá-la e dizer-lhe o quanto ela era importante. Quantos sonhos perdidos ele projectara para Ariana!
Quantas desilusões Ariana representara.! Como Jaime tudo esperava, tudo o que não aconteceu foi desencantamento e tudo o que Ariana conseguiu teve pouco mérito aos olhos do pai.

Cai o céu por um beijo roubado

Decorreram dois anos e Jaime desta feita não soltou as amarras do cais do amor. Prendeu-se à mulher-medusa que borboleteava num encantamento e numa sedução que embriagaram Jaime e o aprisionaram para sempre. Jaime o "Penteadinho" passou a ter uma família. Licas passou a ser o seu refúgio e a sua perdição quando, ainda marinheiro, ia adiando o seu regresso ao Alfeite e a altas horas da noite tinha que percorrer quilómetros em caminhos de terra que serpenteavam as matas de pinheiros esguios e eriçados, sob o luar que inspiravam terrores e arrepios ancestrais. Todos os dias sob o pretexto de ir visitar o seu irmão Adrião, que se mudara com a família para uma casita na mata da enxurrada, Jaime cavalgava sobre uma velha bicicleta para junto da sua amada...
Na bancada de trabalho Jaime assobiou com mais força, alegremente passearam com ligeireza, como nuvem fofa, os cabelos ondulados que enfeitavam o rosto redondo e alvo de Licas.Quem diria que a mulher-menina que parecia tão frágil que galgava valados soltando gargalhadas sonoras, viria a ser a companheira dedicada que lhe daria cinco filhos saudáveis, voluntariosos e independentes?
O primeiro beijo roubado, a primeira loucura vivida a dois deu origem a Ariana que iniciou a sua passagem pela vida numa noite ventosa e fria.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Na viagem decide-se a vida

Por mais distantes que estivessem os momentos em que o rumo da vida mudara de direcção, o assobio de Jaime era o anúncio de uma viagem pelas lembranças que o seu cérebro arrumava metodicamente e por ordem crescente da dor infligida . Na gaveta do fundo do grande armário da existência ficavam os momentos que até poderiam ter sido felizes mas ou porque envolviam personagens insignificantes para Jaime, ou porque com a sua rudeza de carácter e a sua inclinação para o confronto físico, momentos de agradável convívio tinham-se transformado em brigas que acabavam sempre por castigar a cabeça de Jaime que na peleja servia sempre como arma de arremesso. Jaime preferia fingir que esses momentos nunca tinham existido... afinal ele até nem era má pessoa!No topo das recordações Jaime persistia em guardar os tempos difíceis na Serra como se se tratasse de uma zona de conforto que justificava o seu carácter sofredor.
Jaime assobiava uma melodia quase monocórdia e em cada assobiadela salpicos de luz saíam da nebulosa da sua juventude e faziam-no fremir de prazer; luz sob a forma de mulher-menina, loura de olhar marinho e ladino, nariz arrebitado e pequenino, estas memórias raramente eram objecto de conversa em público, pertenciam ao campo do sagrado, da felicidade virtual e no entanto era uma realidade que pertencia ao passado e circulava pelo presente.
Nas horas serenas a imagem de Jaime marinheiro flutuava entre o martelo e a tábua que seria banco, berço ou o que a necessidade exigisse. O nosso marinheiro nunca viria a entorpecer os sentidos no azul do mar profundo só o abraço da menina-mulher e o primeiro beijo fugidio ainda lhe aqueciam o peito e o embriagavam ao fim de tantas décadas de vida em comum.
Ainda no colégio, tinha então dezanove anos, quis o destino que ao fazer a travessia do Tejo com a sua irmã Benvinda, a futura companheira sentara-se a seu lado, distante, delicada, bela de cabelos de trigo sob a lua cheia. Os balanços do "Sempre Fixe", que ligava as duas margens do Tejo, não conseguiram tirar à jovem o seu ar compenetrado e tranquilo. Era passageira habitual do pequeno, mas robusto barco, naquela curta travessia; uma mera viagem no rio que a levava e trazia todos os dias, à mesma hora, e o seu futuro ficaria decidido como se naquele instante mágico algo no universo tivesse parado a contemplar um projecto humano com defeitos e virtudes, com lágrimas, dramas, alegrias e sonhos.


Um banco de madeira numa casca de noz foi o palco escolhido para uma encenação onde as personagens ficaram agarradas ao momento etéreo onde explodiu o amor. Foi assim porque tinha de ser, ninguém perguntou:-" E se alguém questionasse o destino? "