O mundo dos adultos erguia à volta das crianças longas teias de segredos, as decisões nunca eram tomadas em franco e aberto dialogo. Os pequenos giravam na vida dos adultos mas não eram gente. corriam pelas casas, brincavam em surdina mas não eram pessoas a tempo inteiro. Por vezes eram surpreendidas pela chegada repentina de um novo membro da família que se transformava numa incómoda e usurpante presença. Tudo era envolto em mistério, meias palavras, meias verdades, metáforas: a sexualidade, a gestação, o milagre do nascimento e até os afectos. A criança não podia ver a luz da verdade que conspurcaria a inocência natural dos petizes. Nesta atmosfera de meias verdades eles depressa se poderiam transformar em vítimas de terríveis sevícias.
Vivia-se atolado em véus que uma vez levantados poderiam pôr em causa a harmonia social. A verdade era perniciosa nesses tempos em que Deus tinha que existir à força por contrato tácito entre a Razão imperfeita e o coração temente. Jaime recordava-se que aqueles tempos não tempos de escolhas racionais. era o tempo dos silêncios amargos que falavam de guerras, de abortos que não o eram, de infidelidades e violência doméstica que a tradição talhava à sua medida.
Tagarelava-se muito e atafulhados em comiserações e coscuvilhice, as pessoas não erguiam os olhos para a história que se ia desenrolando à porta de cada um. antes de deixar o seu país, Jaime bem se recordava dos carros negros da Chrysler que de vez em quando estacionavam em pontos estratégicos da cidade.
Instintivamente impunha-se o silêncio na Rádio Moscovo. Corria-se mais apressado para ir, à mercearia da frente, comprar um decilitro de azeite, meia dúzia de bolachas Maria ou um quarta de açúcar, amiúde para pôr no role pois o ordenado só chegava ao Sábado.
Apesar destas rotinas inocentes alguém desaparecia para sempre, pela calada da noite, desapareciam engolidos pelos carros negros ! Muitos sabiam que em nome da liberdade a polícia da defesa do estado prendia, torturava e por vezes matava. Muitos sabiam e muitos mais se calaram.
Naqueles tempos ainda tão próximos, pensar, reflectir e criar era um luxo, um desperdício de energias, um perigo para o bem comum que se focava na melhor maneira de sobreviver.
Era imperativo sobreviver à falta de instrução, à falta de apoios sociais, à ausências de qualquer politica de habitação. O olhar só se levantava aos céus para pedir ajuda divina e raramente para ver voar os pássaros livres.
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