quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Na viagem decide-se a vida

Por mais distantes que estivessem os momentos em que o rumo da vida mudara de direcção, o assobio de Jaime era o anúncio de uma viagem pelas lembranças que o seu cérebro arrumava metodicamente e por ordem crescente da dor infligida . Na gaveta do fundo do grande armário da existência ficavam os momentos que até poderiam ter sido felizes mas ou porque envolviam personagens insignificantes para Jaime, ou porque com a sua rudeza de carácter e a sua inclinação para o confronto físico, momentos de agradável convívio tinham-se transformado em brigas que acabavam sempre por castigar a cabeça de Jaime que na peleja servia sempre como arma de arremesso. Jaime preferia fingir que esses momentos nunca tinham existido... afinal ele até nem era má pessoa!No topo das recordações Jaime persistia em guardar os tempos difíceis na Serra como se se tratasse de uma zona de conforto que justificava o seu carácter sofredor.
Jaime assobiava uma melodia quase monocórdia e em cada assobiadela salpicos de luz saíam da nebulosa da sua juventude e faziam-no fremir de prazer; luz sob a forma de mulher-menina, loura de olhar marinho e ladino, nariz arrebitado e pequenino, estas memórias raramente eram objecto de conversa em público, pertenciam ao campo do sagrado, da felicidade virtual e no entanto era uma realidade que pertencia ao passado e circulava pelo presente.
Nas horas serenas a imagem de Jaime marinheiro flutuava entre o martelo e a tábua que seria banco, berço ou o que a necessidade exigisse. O nosso marinheiro nunca viria a entorpecer os sentidos no azul do mar profundo só o abraço da menina-mulher e o primeiro beijo fugidio ainda lhe aqueciam o peito e o embriagavam ao fim de tantas décadas de vida em comum.
Ainda no colégio, tinha então dezanove anos, quis o destino que ao fazer a travessia do Tejo com a sua irmã Benvinda, a futura companheira sentara-se a seu lado, distante, delicada, bela de cabelos de trigo sob a lua cheia. Os balanços do "Sempre Fixe", que ligava as duas margens do Tejo, não conseguiram tirar à jovem o seu ar compenetrado e tranquilo. Era passageira habitual do pequeno, mas robusto barco, naquela curta travessia; uma mera viagem no rio que a levava e trazia todos os dias, à mesma hora, e o seu futuro ficaria decidido como se naquele instante mágico algo no universo tivesse parado a contemplar um projecto humano com defeitos e virtudes, com lágrimas, dramas, alegrias e sonhos.


Um banco de madeira numa casca de noz foi o palco escolhido para uma encenação onde as personagens ficaram agarradas ao momento etéreo onde explodiu o amor. Foi assim porque tinha de ser, ninguém perguntou:-" E se alguém questionasse o destino? "

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