quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Dois mundos um único fim...

Com os seus doze anos vividos aqui e agora, com a dor à flor da pele a viagem de Jaime foi uma fuga para longe do mal infligido estupidamente. Santa Apolónia pareceu-lhe vasta e assustadora. Procurou o seu irmão Adrião que entretanto imigrara para Lisboa. O olhar do seu irmão foi o que chamou a atenção do jovem: Olhos semicerrados, cansados da vida da cidade grande e doentia. O olhar azul e sonhador do montanhês tinha desaparecido.As oito horas da viagem tinham-lhe colado o estômago às costas. A despesa da viagem fora assegurada pelo Regedor da aldeia que com compaixão ajudou Jaime a fugir. Claro que o dinheiro emprestado, a seu tempo, seria cobrado a Francisco que conseguiu livrar-se a uma ordem de prisão, por mero respeito pela família. usara de grande violência contra um menor, o que podia sem dúvida ser crime, mas fazia parte da cultura da época.
A beleza da serra foi substituída pela degradação dos bairros periféricos de Lisboa. A viagem até ao bairro do Cruzeiro foi mais um suplício para Jaime que desde a partida de Alpedrinha nada tinha comido . Passou pela Baixa lisboeta e pela primeira vez viu um eléctrico amarelo que deslizava ruidosamente pelos meandros das colinas brancas, sob o sol tímido da madrugada. Enjoado, baloiçava ao sabor dos movimentos do transporte eléctrico. Deixou para trás o Calvário e pensou nas ruelas de Alpedrinha, reviu o "seu"  Calvário, perto da Igreja Matriz e ficou em pânico.A última etapa foi feita a pé.
A passos largos Adrião aproximou-se do Cruzeiro onde barracas encavalitadas cresciam, no Alto da Ajuda, ali mesmo ao lado do opulente Palácio neoclássico do século XIX. Ironia social, o encontro destes dois mundos tão distintos e no fundo um só.

Paredes de madeira e lata bem perto da residência oficial que recebera a família real, até à implantação da república em 1910,  decorada com aparatosas  tapeçarias de Bruxelas e pinturas alegóricas. Nas barracas nasciam e morriam pobres, mantidos na ignorância, desprezados pela sociedade obscurantista e elitista. No Palácio num passado bem recente, faustosas festas foram organizadas para os filhos D. Carlos e D. Afonso pela rainha D. Maria Pia ,sempre à custa do suor, do sangue e da própria vida de todas as mãos que laboram, contudo no final  só o pó ou a memória restam... tanto  dos ricos como dos pobres.

Chegaram ao número cento e trinta e um da Travessa do cruzeiro. Entraram num pátio antigo, um pátio do século XVIII onde as habitações degradadas abrigavam famílias de operários que desde os anos trinta, chegavam em busca de melhores condições de vida.
As paredes feitas de tijolo de burro, mostravam pouca manutenção por parte dos proprietários que viviam das rendas cobradas aos inquilinos que íam esvaziando o interior do país.
A vida no Pátio era como um trecho de uma história de encantar, onde os ódios, as paixões, os ciúmes,as alegrias e as tristezas eram vividos num espaço restrito e mágico. As querelas entre os miúdos depressa se transformavam em brigas de adultos.
Jaime partilhou este espaço fechado como uma ilha , durante pouco tempo. O irmão Adrião começou a exigir mais dinheiro para o orçamento familiar. O jovem preferiu procurar um quartito na Boa Hora para se sentir dono da sua vida. Até o conseguir qualquer buraco que o abrigasse da noite seria bem-vindo. 







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