quinta-feira, 26 de agosto de 2010

As laranjas que mudaram o rumo da vida

Jaime desejava ultrapassar o impasse que era a sua existência...mas como?Sem sonhos bem definidos não  conseguimos ir além da encruzilhada onde ficamos à espera que a mudança chegue nas asas do imprevisto.
Jaime tinha agora treze anos, franzinos e rebeldes. Era um  adolescente habituado às agruras das noites passadas ao relento. Francisco, o seu irmão não era a pessoa mais indicada para o orientar e proteger dos primeiros desencontros com a vida. Ele era um homem rude, ignorante e egoísta. Estava seco o seu coração, como secas eram as terras que circundavam as Lajes.
Os sentimentos altruístas de Jaime ainda habitavam o seu coração o que o levou, certo dia, a apanhar do chão umas laranjas que, de tão maduras, não resistiram ao vento "Marçagão" que naquela Primavera soprara dos montes com mais força. Eram belas laranjas, rugosas que deixavam adivinhar, pelo peso o seu elevado teor de sumo. Este fruto doce, rico em vitamina C, fazia ,parte da alimentação que entre o Outono e a Primavera fornecia uma boa fonte de ácido cítrico especialmente aconselhado para a saúde cardiovascular. O acto de apanhar as laranjas, tinha um propósito: iriam ser oferecidas a um dos irmãos que estava de partida.Esta oferta iria ser o marco que transformaria a vida de Jaime.Nunca sabemos o momento certo que nos leva a subir o degrau, rumo a uma nova vida.
Ao descobrir a oferta feita a João, Francisco agrediu-o selvaticamente. A cabeça a latejar de medo e de raiva, o sangue a escorrer da fronte, ofegante, o miúdo procurou ajuda e ela chegou pelas mãos do Senhor Regedor José Correia.
Foi num comboio muito semelhante  ao que o trouxe de volta à sua terra , três décadas depois, que ele partiu, tendo como único tesouro os cento e cinquenta escudos dados pelo Regedor. Ao saber da ocorrência, o seu pai, num derradeiro gesto de simpatia, fez-lhe companhia até Castelo Branco. Aí deixou-o sozinho, foi então que Jaime fechou para sempre a porta da sua vida de criança- pastor mas ao fechar essa porta sem pedir contas ao passado ele nunca viria a ser um homem em paz com o mundo porque os seus laços de afecto seriam sempre remendos de desamor e desconfiança.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Mimos da vingança

As humilhações que sentira teriam como compensação as travessuras infligidas aos sobrinhos que vagueavam pelos campos e vinhedos.Gostavam de depenicar os cachos, como passarinhos, saltitavam pelos vinhais. Se a fome ou a sede apertavam, os cachos ficavam então mais pobres e rapados.
Jaime desesperado, sabia que seria responsabilizado e castigado.Com prazer vingativo, envolvia os bagos de uva madura com excrementos . Eram mimos de criança revoltada. Maliciosas maldades sem consequências dramáticas.Tio e sobrinhos tinham quase a mesma idade. Ao primeiro já tinham roubado a infância aos segundos também lhes negariam um futuro promissor.Eram crianças descalças, o monco permanente dava-lhes um aspecto sujo e desmazelado.

O relógio de bolso

A viagem de Jaime reavivou-lhe a memória, ao ponto de conseguir recordar-se de um pequeno objecto que durante algum tempo ele cobiçou. Era o relógio de bolso do Chico (seu irmão). Simples relógio de bolso que para Jaime era símbolo de um estatuto mais importante, riqueza de homem feito, responsável pelo tempo que até então só o sol tinha servido como guia. Eram acanhados sonhos de menino que já tinha as suas histórias para contar.O irmão sabia desse seu desejo e mais uma vez lhe fez a promessa de um dia lho oferecer.Era uma forma rápida de calar o pedido, reiterado vezes sem conta. O peito do Jaime encheu-se de vaidade e de alegria ao ouvir esta promessa que seria a sua primeira recompensa material pelos serviços de pastor.
O relógio, pendurado na parede esperou, mudo, sem corda, pelo futuro dono.Mas...porquê esperar pelos  dois anos de trabalho, sem uma gratificação,um carinho, um sorriso ou uma refeição mais copiosa em dia de festa? A impaciência crescia à medida que o tempo passava.
Um dia Jaime decidiu-se.Pegou no relógio de bolso e sorrateiro partiu com o gado para os lameiros onde o pasto era mais rico.
Partiu mais rico, mais feliz com o tão cobiçado guardião do tempo.Finalmente não precisaria de olhar para o sol na sua curva descendente para saber se eram horas de recolher. Aquele companheiro falaria com ele, na solidão dos campos de malvas que a sua mãe tantas vezes utilizara para combater constipações e outros achaques.
Enquanto percorria as leiras (onde o feijão frade crescia discreto e branco, nas vagens), ansioso apalpava o colete...ele lá estava, o pequeno relógio de algibeira, com corrente e tudo!
O azedo carácter do irmão deitou cedo por terra este parco prazer de posse.Certo dia ao fugir da sua fúria intempestiva, Jaime perdeu o seu tesouro. Aflito, tentando escapar às bordoadas que voavam sobre ele,saltou lesto um muro que se erguia nas Beiradas. O relógio saltou do pequeno bolso. Durante meses o objecto cobiçado ficou enterrado no meio dos feijoeiros.Acidentalmente Jaime encontrou-o mas não voltou a servir-lhe de guia do tempo.O relógio jamais seria seu e regressou ao prego na parede.
Aprendeu à sua custa a não desejar o alheio , a não esperar por promessas que podem sustentar a inércia da nossa vontade. Nada na vida lhe seria oferecido "de bandeja" por isso desenvolveu habilidades que mais tarde facilitariam a sua vida.Seria um exímio artesão , um artista na sua profissão.Já adulto, quando pegava religiosamente nos seus relógios de colecção, sorria com malícia, como se se tratasse de uma pequena vingança pelas humilhações infligidas.

Sonhar timidamente,

Jaime partia agora sozinho para a serra. Rezava para que os lobos não lhe tresmalhassem o gado que na sua inocente credulidade pensava partilhar com o irmão Francisco que lhe propusera sociedade.Quase a troco de nada trabalhava com mais prazer, afinco e esperança no futuro que já podia desenhar a cores. Havia noites em que era acordado pelos  chocalhos aflitos depois de ter sucumbido ao cansaço e ao frio. Saía da cabana, ou do abrigo, e escutava a noite, preparado para enfrentar as urzes e os silvados que lhe rasgavam o rosto quando mergulhava na serra sem luar. O rebanho, o seu pé-de-meia, fugia espavorido, à frente de algum lobo esfomeado.Tinham-lhe há muito roubado os medos da infância e partia tiritante e valente. A busca, por vezes, durava toda a noite. O castigo corporal já ele tinha como certo mas que diabo... não seria um predador que o faria desistir do seu negócio. Pela manhã encontrava o rebanho mais pobre de um cordeiro.Mas neste negócio familiar só um sairia a ganhar, a promessa de sociedade, entre os irmãos , nunca viria a ser cumprida.Este homenzinho, ainda à sombra da infância, foi aprendendo, sem o saber ainda, que os sonhos quando são tímidos raramente se tornam realidade.Um sopro de sonho pode transformar a vida numa busca frustrante de algo que nunca terá forma e nos deixa em permanente insatisfação.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O seio da Mulher

A mãe Ermelinda estava de novo de esperanças. Uma menina vinha a caminho e o nome já estava escolhido: Seria Benvinda a criança que acabaria, meses mais tarde, por debilitar ainda mais esta mulher com o futuro comprometido.
Jaime, ainda carente do regaço materno lançava um olhar ladino ao ver a mãe Ermelinda amamentar o novo rebento. Então  aproximava-se timidamente, na mão um pequeno escabelo tosco e carunchoso.


A mãe fazia-lhe um sinal de assentimento e era vê-lo, sentado em frente deste maravilhoso quadro vivo, tentando chegar ao seio redondo. Deliciado sorvia o néctar da fonte santa desta mulher!
 Jaime sorriu e estremeceu com ternura. Abriu os olhos, o tempo inexorável tinha-lhe roubado o bem precioso que era o amor incondicional de sua mãe. O Ameal ficaria para sempre vazio e sem sentido após a sua morte prematura. O pai mal esperou que findasse o período do nojo para partir com outra companheira, deixando os mais novos entregues ao irmão mais velho Francisco  que casara com a filha do patrão: Maria, moça pouco bafejada pela beleza mas valente como só o sabem ser as mulheres na alucinada e exaltada luta pela conservação e perpetuação da espécie. Maria e Francisco seriam a partir de então os infernais protectores da família já marcada pela desditosa perda de Ermelinda.
Jaime passou a viver numa verdadeira escravatura. Trabalhava sem direito a salário, sem direito a consolar o estômago ou ao conforto quente do lar.O luar passou a ser o seu tecto, a serra a sua morada permanente, o rebanho a sua nova família!
Em casa os armários eram fechados a sete chaves por isso Jaime pôs para trás os valores tão piamente transmitidos pelos pais e viu-se obrigado a assaltar as figueiras vizinhas para acalmar a dor que lhe apertava as entranhas. Os figos passaram a ser um inocente e necessário pecado.