A viagem de Jaime reavivou-lhe a memória, ao ponto de conseguir recordar-se de um pequeno objecto que durante algum tempo ele cobiçou. Era o relógio de bolso do Chico (seu irmão). Simples relógio de bolso que para Jaime era símbolo de um estatuto mais importante, riqueza de homem feito, responsável pelo tempo que até então só o sol tinha servido como guia. Eram acanhados sonhos de menino que já tinha as suas histórias para contar.O irmão sabia desse seu desejo e mais uma vez lhe fez a promessa de um dia lho oferecer.Era uma forma rápida de calar o pedido, reiterado vezes sem conta. O peito do Jaime encheu-se de vaidade e de alegria ao ouvir esta promessa que seria a sua primeira recompensa material pelos serviços de pastor.
O relógio, pendurado na parede esperou, mudo, sem corda, pelo futuro dono.Mas...porquê esperar pelos dois anos de trabalho, sem uma gratificação,um carinho, um sorriso ou uma refeição mais copiosa em dia de festa? A impaciência crescia à medida que o tempo passava.
Um dia Jaime decidiu-se.Pegou no relógio de bolso e sorrateiro partiu com o gado para os lameiros onde o pasto era mais rico.
Partiu mais rico, mais feliz com o tão cobiçado guardião do tempo.Finalmente não precisaria de olhar para o sol na sua curva descendente para saber se eram horas de recolher. Aquele companheiro falaria com ele, na solidão dos campos de malvas que a sua mãe tantas vezes utilizara para combater constipações e outros achaques.
Enquanto percorria as leiras (onde o feijão frade crescia discreto e branco, nas vagens), ansioso apalpava o colete...ele lá estava, o pequeno relógio de algibeira, com corrente e tudo!
O azedo carácter do irmão deitou cedo por terra este parco prazer de posse.Certo dia ao fugir da sua fúria intempestiva, Jaime perdeu o seu tesouro. Aflito, tentando escapar às bordoadas que voavam sobre ele,saltou lesto um muro que se erguia nas Beiradas. O relógio saltou do pequeno bolso. Durante meses o objecto cobiçado ficou enterrado no meio dos feijoeiros.Acidentalmente Jaime encontrou-o mas não voltou a servir-lhe de guia do tempo.O relógio jamais seria seu e regressou ao prego na parede.
Aprendeu à sua custa a não desejar o alheio , a não esperar por promessas que podem sustentar a inércia da nossa vontade. Nada na vida lhe seria oferecido "de bandeja" por isso desenvolveu habilidades que mais tarde facilitariam a sua vida.Seria um exímio artesão , um artista na sua profissão.Já adulto, quando pegava religiosamente nos seus relógios de colecção, sorria com malícia, como se se tratasse de uma pequena vingança pelas humilhações infligidas.
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