Jaime habituara a família a tratar a vida como um casaco velho. Utilizamo-lo, despimo-lo e sem olhar a sua história deitamo-lo fora sem meios-termos. Ariana conciliou-se com a ideia que tudo o que nos pode fazer felizes é efémero assim como tudo o que nos magoa faz de nós fortalezas. Desde pequenita habituou-se a deixar a protecção familiar e por isso não hesitou a pôr um ponto final às suas estadias no Montejunto. Selou a porta às noites em claro, ouvindo pela calada da noite o seu avô a rondar a casa de pistola em riste pronta a disparar, acordando os temores que vivera em Moçambique, onde uma sombra podia ser a morte anunciada.
A sombra dessa noite era a de Uri que respondera à chamada da amiga. Naquela noite rastejou até à janela do quarto de Ariana por onde ela fez, sorrateiramente, deslizar uma carta, endereçada aos pais. Era um grito de socorro abafado pela vergonha: - " Venham buscar-me, não quero mais estar aqui !"
Nessa noite o pequeno amigo correra riscos, mas a cumplicidade nasceu e morreu ali mesmo. Com pesar ele sabia que estava a ajudar a amiga a sair para sempre da sua vida.
Nunca mais brincariam debaixo do monumental pinheiro. Nunca mais ririam ao ver os carreiros de formigas , como exércitos obedientes transportando as provisões para o inverno, serem dispersados com pequenos paus. Maldades pueris que aumentam a excitação ao intervir na ordem natural. Nunca mais desceriam à socapa até à ribeira que saltitava humildemente por entre seixos e barro no meio do canavial. Pobre criaturas douradas e avermelhadas, nadavam em fuga debaixo dos pézitos descalços que chapinhavam num barulho ensurdecedor. Pequenos gritos calavam o trinar dos pássaros e o cantar da cigarra, escondidos nos choupos e nas canas que, assobiavam nos dias ventosos e ondulavam, indolentes, quando uma ligeira brisa da serra animava as crianças que partiam numa louca correria, ribeira abaixo, tal navegadores sem bússola, descobrindo mais e mais pedaços de horizonte que parecia encolher diante dos olhos delirantes de alegre camaradagem.Nunca mais brincariam com os pequenos brinquedos feitos por Uri que, com extrema habilidade e paciência, pegava em arames, torcia e retorcia-os até lhes dar a forma desejada. Ariana olhava sempre boquiaberta as mesinhas, as cadeiras, as bicicletas ou as carroças que apareciam como por magia e que ocupavam as crianças nas tardes solarengas, debaixo da macieira ou no meio do caminho de terra.
Nunca mais desceriam às minas onde a escuridão os impedia de ir além da entrada onde a água cristalina e gelada dormia no seu cálice sagrado. As risadas tornavam-se então mais nervosas perante aquele milagre da terra que chorava revelando-lhes as suas entranhas e segredos.
Ariana trocou estas aventuras na serra por uma vida na cidade, presa entre as paredes de um primeiro andar, para se livrar das investidas sexuais do Velho do Chapéu.
Nenhuma criança merece tão cruelmente ser obrigada a crescer, reconhecendo a necessidade de fugir do abraço pérfido e matreiro de quem deveria protegê-la.
Sem comentários:
Enviar um comentário