terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Tempestade

Toda a infância de Ariana fora um mundo do parecer que aniquilava o ser puro do qual ela não queria abrir mão. Apesar da tenra idade ela sabia que cada partida e cada chegada seriam sempre momentos de limpeza da alma, mais que enriquecimento, descoberta ou mudança. Perder a confiança nos adultos, ver neles a fonte dos pesadelos reais , transforma uma criança num adulto desiludido com todos e com a vida em geral. Um adulto alegre, capaz de encher uma sala com as suas gargalhadas, nunca viveu o sobressalto ao ouvir passos que pela noite dentro vagueiam pelas fronteiras da luxúria, dos jogos interditos. Um adulto descomplexado nunca dormiu encolhido nos lençóis que eram a última barreira que as mãos calosas do Velho ousavam transpor despudoradamente.
O som do seu coração galopante assustava-a...tudo seria mais fácil se ele parasse de bater! Na vasta cama que tinha atravessado oceanos, que tinha enfrentado a fúria do Zambeze, uma criança tremia antecipando o fugaz toque de mãos rudes que procuravam sem vergonha lugares interditos, puros e secretos. Ariana era o seu troféu de caça nocturna, tão indefesa como a pele de cobra ou de tigre que adornavam as paredes. Tão trémula e submissa como os filhotes de cervo cujas peles cobriam o solo.
Matança inútil como o é todo o acto que implica morte e sofrimento, por prazer ou desporto. Ariana era agora a presa que morria lentamente enquanto as mãos sebosas exploravam o corpito magro, dormente e vazio.O seu espírito vagueava pelo quarto e incrédula olhava para baixo e via na vasta cama uma menina que ela não reconhecia de tão encolhida que estava à espera que passasse a tempestade.

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