terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Uma vida nos veios de um tronco

Jaime trauteou uma moda da sua terra:
"Alecrim, alecrim dourado
Que nasceu no campo
sem ser semeado.

Alecrim, alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado.

Foi meu Amor
Quem me disse assim
Que a flor do campo
É o alecrim"
À medida que a cantiga avançava a voz tornava-se num murmúrio, um fio de água do monte. Jaime olhou o horizonte do plano geral da sua vida e achou que em certa medida tinha mexido no destino das pessoas que ele mais amava. Não conseguiu sentir mágoa por ter assumido o papel de actor e realizador da sorte da sua família. Sentiu-se abençoado por ter a liberdade de escolha num projecto de vida que talvez estivesse nas mãos de poderes ocultos, ele não sabia nada dessas questões de Deus, de livre arbítreo ou de fatalidade. O certo é que ele selou um pacto com a vida: não deixaria que ela acontecesse fazendo dele um espectador lamuriante, um eterno queixoso.
Lixou o tampo da mesa , com vigor, passou com os dedos sobre a textura fina e suave da faia. ele apreciava o grão fino desta variedade de madeira que resistia à força do serrote tal como o seu seco coração parecia impenetrável ao afectuoso abraço dos filhos; Jaime seguia meticulosamente os sentido dos veios, a lixa ia e vinha em movimentos regulares, para que as fibras da madeira não fossem danificadas. O acabamento tinha que ser perfeito.
Licas achava que o seu companheiro e esposo tinha a mania da perfeição, uma espécie de loucura saudável e construtiva que o impelia a procurar uma ordem metódica na arrumação da sua bancada assim como na organização da sua vida.
Ele tinha rotinas que exigiam paciência, dedicação, mas jamais empreendeu uma tarefa que não lhe desse satisfação, talvez por isso podia considerar-se um homem livre e feliz mas eternamente insatisfeito; era uma insatisfação positiva que não lhe tolhia a vontade, bem pelo contrário ele era criador, artista, obreiro do seu caminho.

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